Semana passada um amigo resolveu questionar a educação institucionalizada, enquanto conversávamos sobre métodos e escolas. Na opinião dele, deveria ser possível a qualquer um educar seus filhos em casa, não podendo o Estado alegar abandono intelectual pelo fato de o filho não frequentar a escola.
Argumentei que um currículo básico (criado pelo Estado) tem dupla finalidade: enquanto busca uma certa uniformidade na educação em todo o país, tenta garantir um nível mínimo de desenvolvimento a partir da exigência que qualquer instituição de ensino cumpra aquele mínimo. O mínimo é exatamente isso: um mínimo. E a educação institucionalizada de certa forma buscaria a mesma garantia.
E eu fiquei de explicar pra ele, aqui no blog, porque o Estado quer que ele estude e, consequentemente, porque quer que ele coloque os filhos em uma escola ao invés de sentar com eles à mesa da sala cercado de livros de cálculo (matemático), biologia e física avançada.
Nada que o Estado faz decorre de bondade ou solidariedade ou compaixão. O Estado não é um ente despersonalizado caridoso, mas um ente criado com um objetivo simples: externalizar e tornar minimamente imparcial aquele poder que todos nós temos de mandar em nosso próprio destino. Esse poder central termina por ser o “guardião” dos valores defendidos pela sociedade que o criou, e daí surgem as políticas públicas.
Criam-se políticas públicas para implementar aquilo que a sociedade (no nosso caso, através da Constituição) entende como essencial, como mínimo. E aqui entra o texto constitucional em suas diversas passagens:
Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
III – a dignidade da pessoa humana;Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II – garantir o desenvolvimento nacional;
III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.
Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:
XXIV – diretrizes e bases da educação nacional;Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.
Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:
III – pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino;
VII – garantia de padrão de qualidade.
Daí que a Constituição toda fala “Estado, garanta à sociedade o acesso à educação” – fala-se Estado, não Executivo, ou seja, não se fala em Ministério da Educação, secretaria estadual ou secretaria municipal ou, ainda, em União, estado e município ou em presidente, governador e prefeito. Cabe ao Estado garantir isso, e, em cabendo ao Estado, o constituinte originário (aquele que, lá atrás, representando a sociedade – e não entremos no mérito de como esses representantes foram escolhidos à época) entendeu que deveria a União (e não o Ministério da Educação ou o presidente) ficar encarregada de legislar sobre as diretrizes e bases da educação nacional.
Quem legisla nessa esfera? O Congresso. E aí surgiu a famosa Lei de Diretrizes e Bases (a mesma que nos idos de 1998 me deixou preocupada com a minha formação técnica e a possível obrigatoriedade de eu ter que fazer faculdade para dar aula, perdendo três anos da minha vida acadêmica).
Segundo a LDB, “é dever dos pais ou responsáveis efetuar a matrícula dos menores, a partir dos seis anos de idade, no ensino fundamental”. E esse dever é reforçado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente
– Mas e se eu quiser educar minha filha em casa? Por que o Estado define as diretrizes? O “Estado” é um discurso absoluto. ‘É porque eu quero’. Acho que o Estado se mete muito em tudo.
Livre arbítrio, autonomia privada, liberdade e tudo o mais, nossa liberdade é limitada àquilo que não nos é vedado ou a cuja prática a sociedade não se opõe.
Oposição social = lei.
É a lei que define o parâmetro de comportamento socialmente aceito, criado pela própria sociedade. Pressupõe-se que as regras são criadas sem emoção, o que é irreal, obvio. Por isso, inclusive, as diferenças entre a constituição americana e a nossa. A deles foi criada em um contexto de “eu quero resolver tudo, dane-se o estado; ele só interfere quando for essencial” e tem sobrevivido a base de emendas (poucas) e interpretações (muitas). A nossa foi criada pós ditadura, quando se percebeu q deixar as coisas muito abertas significaria permitir muita interpretação, e muita criação no ato. Por isso ela é enorme, detalhada.
Se você quer matar alguém, ok, mas esteja ciente das consequências, previstas no Código Penal (aliás, se você nunca percebeu, repare que o Código Penal não diz “é proibido matar” em lugar nenhum). Se você não quer matricular seu filho em uma escola, opta por educá-lo em casa, ok, mas esteja ciente das consequências. E saiba que enquanto a Constituição falar em garantia do padrão de qualidade pelo Estado e a União entender que não tem como garantir essa qualidade deixando que cada um eduque seu filho como e onde quiser, o abandono intelectual estará te assombrando:
Art. 246 – Deixar, sem justa causa, de prover à instrução primária de filho em idade escolar:
Pena – detenção, de quinze dias a um mês, ou multa.
Mas até aqui foi juridiquês puro… Independentemente disso, há um conceito muito mais simples por trás do interesse em educar a sociedade: a produção de riqueza. Quanto maior o valor agregado de um bem, maior a arrecadação de tributos; quanto maior o capital intelectual colocado na produção daquele bem, maior seu valor agregado; quanto maior e mais complexa a formação (acadêmica, profissional) de um determinado indivíduo, maior o capital intelectual que ele produz.
O Estado não força a educação institucionalizada por ser bonzinho – o conceito de bondade é subjetivo, inerente a pessoas, e o Estado não é uma pessoa, o Estado não sente.
Tampouco a educação institucionalizada é defendida por pura previsão constitucional – previsão constitucional precisa de regulamentação e, no caso da LDB, essa regulamentação veio em 1996, 08 anos após a Constituição. Querem um outro exemplo? Adicional de penosidade, previsto no art. 6º da Constituição – cadê a regulamentação? [Olha que nos meus anos enquanto professora eu lamentei amargamente a ausência desse adicional, embora reconhecendo a redução no tempo de contribuição para aposentadoria.] Quando o poder público não tem interesse, se omite. Fortemente.
Mas daí a gente desce a lei toda e olha láaaa embaixo quem era o digníssimo presidente da República Federativa do Brasil: Sr. FHC, cuja meta principal era gerar mais riqueza.
O Estado quer que você estude porque você tem mais valor quanto maior o valor que você consegue agregar aos bens e serviços que você produz. Capitalismo puro, meu caro. Não é socialismo, não é comunismo. É o entendimento de que se vo Estado controlar minimamente quem estuda o quê, onde e como ele poderá aumentar o IDH, capacitar um maior número de pessoas, produzir bens de maior valor e aumentar a arrecadação.
O fato de sua filha ser beneficiada com essa educação institucionalizada é um detalhe. Um detalhe que calha de ter previsão constitucional e calha de ser um dos balizadores do próprio Estado brasileiro. A diferença é que é um detalhe que combina com diversas outras políticas públicas. E, em assim sendo, será perseguido, defendido e protegido, ainda que com isso se afaste a sua liberdade de educar sua filha exclusivamente em casa.
Mas, por favor, complemente a educação institucional. Os professores agradecem.
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Em tempo:
O Código Penal já falava em abandono intelectual. O ECA é de 1990 e já continha a obrigatoriedade de matricular o menor em instituição de ensino. A única inovação trazida pela LDB foi exatamente a uniformização do currículo, que passou a ser nacional (admitidas peculiaridades locais).